Cetamina e outros moduladores de recetores de glutamato para depressão em adultos com doença bipolar

Qual a importância desta revisão?

A doença bipolar é uma das mais graves doenças mentais caraterizada por episódios de mania (humor anormalmente elevado ou irritabilidade entre outros sintomas durante um curto período de tempo), ou hipomania (os mesmos sintomas com menor duração) e depressão major (humor depressivo). A fase depressiva da doença está ligada a um risco elevado de comportamentos autolesivos e suicídio. Os tratamentos atuais para a depressão na doença bipolar nem sempre são eficazes e podem ser lentos. Entre os tratamentos novos e alternativos mais promissores estão os moduladores de recetores de glutamato. Estes medicamentos funcionam de uma forma diferente dos medicamentos normalmente utilizados, tais como os antidepressivos. Esta é uma atualização de uma revisão publicada em 2015. Como mais estudos clínicos foram publicados desde então, é importante atualizar esta revisão com a evidência mais recente.

Quem estará interessado nesta revisão?

- Pessoas com doença bipolar, os seus amigos e familiares.

- Clínicos gerais, psiquiatras, psicólogos e farmacêuticos.

- Profissionais que trabalhem em serviços de saúde mental para adultos.

A que questões pretende esta revisão responder?

1. A cetamina e outros moduladores de recetores de glutamato são melhores no tratamento da depressão bipolar do que um placebo ou outros antidepressivos?
2. Os pacientes a quem foi prescrito cetamina ou outros moduladores de recetores de glutamato apresentam menos efeitos secundários do que as pessoas que tomam um placebo ou outros antidepressivos?

Quais foram os estudos incluídos nesta revisão?

Procurámos em bases de dados para encontrar todos os estudos relevantes concluídos até 30 de julho de 2020. Estes estudos tinham de ser ensaios clínicos aleatorizados e controlados (onde as pessoas que participam no estudo são encaminhadas aleatoriamente para receber o medicamento a ser testado ou um outro medicamento diferente ou um placebo, de forma a poder comparar os seus resultados). Para serem incluídos na revisão, os estudos tinham de comparar a cetamina ou outros moduladores de recetores de glutamato com um placebo ou com outros medicamentos, em adultos com depressão bipolar. Foram incluídos 10 estudos (647 participantes). Os estudos investigaram cinco fármacos moduladores dos recetores de glutamato diferentes: cetamina (três ensaios), memantina (dois ensaios), citidina (um ensaio), N-acetilcisteína (três ensaios), e riluzol (um ensaio). Nove estudos compararam moduladores de recetores de glutamato com placebo, e um estudo comparou a cetamina com outro medicamento. A maioria dos ensaios nesta revisão incluiu participantes que também estavam a receber outros medicamentos (lítio, valproato, ou lamotrigina). Classificámos o nível de certeza da evidência em 'muito baixo' a 'baixo' nas diferentes comparações consideradas, o que significa que não podemos estar confiantes de que os resultados sejam uma representação próxima da verdade.

O que é que a evidência desta revisão nos diz?

A eficácia dos moduladores dos recetores de glutamato foi medida primariamente como o número de pacientes cujos sintomas de depressão foram reduzidos em 50% com o tratamento. Uma única dose de cetamina injetada numa veia mostrou ser melhor do que um placebo, mas isto foi baseado em evidência muito limitada (dois estudos com 33 participantes), e o seu efeito só durou até 24 horas. Não foram encontradas diferenças nos efeitos secundários entre a cetamina e o placebo, apesar das descrições de estados de transe ou dissociação (um estado semelhante a um sonho em que o corpo e a mente são sentidos como entidades separadas). O pequeno número de participantes incluídos nesta revisão revela que não podemos dizer ao certo se os moduladores de recetores de cetamina ou glutamato funcionam melhor do que outros antidepressivos. Não foram encontradas diferenças entre memantina, citidina, N-acetilcisteina e placebo relativamente ao número de pessoas que responderam ao tratamento ou que sofreram efeitos secundários, e não havia dados disponíveis para o riluzol.

O que deve acontecer a seguir?

A cetamina pode ou não ser um medicamento eficaz como tratamento adicional aos estabilizadores do humor em pessoas com depressão bipolar, mas como a quantidade de dados era pequena, não somos capazes de tirar quaisquer conclusões sólidas. Os dados sugerem que a cetamina pode funcionar muito rapidamente na depressão bipolar, mas que os efeitos duram apenas um curto período de tempo. Todos os ensaios clínicos examinaram a eficácia da cetamina quando injetada, o que é menos prático do que outras formulações, tais como tomar um comprimido. A investigação futura deve concentrar-se no uso a longo prazo da cetamina em comparação com placebo e outros medicamentos, para que possamos tirar conclusões sólidas sobre quais os tratamentos mais eficazes. É necessária mais investigação sobre os efeitos secundários a longo prazo, uma vez que alguns estudos demonstraram que o uso de cetamina a longo prazo está ligado a problemas de memória.

Conclusão dos autores: 

É difícil tirar conclusões confiáveis desta revisão, tendo em conta o baixo ou muito baixo nível de certeza da evidência, e a quantidade relativamente pequena de dados utilizáveis para análise no contexto da doença bipolar, que é consideravelmente inferior à quantidade de informação disponível para a depressão unipolar. No entanto, encontramos evidência incerta a favor de uma única dose intravenosa de cetamina (como terapêutica adjuvante dos estabilizadores do humor) relativamente ao placebo, em termos de taxa de resposta até 24 horas; no entanto, a cetamina não mostrou melhor eficácia na remissão da depressão bipolar. Embora a cetamina tenha o potencial de ter um efeito antidepressivo rápido e transitório, a eficácia de uma única dose intravenosa pode ser limitada. Não encontrámos evidência conclusiva sobre eventos adversos associados à cetamina, e não havia evidência suficiente para tirar conclusões relevantes para os restantes moduladores dos recetores de glutamato.

Contudo, os efeitos psicomiméticos da cetamina (tais como delírios ou delirium) podem ter comprometido a ocultação da intervenção em alguns estudos, e por isso não podemos descartar o potencial viés introduzido por procedimentos inadequados de ocultação. Para tirar conclusões mais sólidas, são necessários mais ensaios clínicos metodologicamente sólidos (com ocultação adequada) para explorar diferentes modos de administração de cetamina, e para estudar diferentes métodos de manutenção da resposta antidepressiva, tais como administrações repetidas.

Leia o resumo na íntegra...
Introdução: 

A disfunção do sistema glutamatérgico tem sido implicada na fisiopatologia da depressão bipolar. Esta é uma atualização da Cochrane Review 2015 para a utilização de moduladores de recetores de glutamato para a depressão na doença bipolar.

Objetivos: 

1. Avaliar os efeitos da cetamina e de outros moduladores dos recetores de glutamato no alívio dos sintomas agudos da depressão em pessoas com doença bipolar.
2. Rever a aceitabilidade da cetamina e de outros moduladores dos recetores de glutamato em pessoas com doença bipolar que apresentem sintomas depressivos.

Métodos de busca: 

Pesquisámos na Cochrane Central Register of Controlled Trials (CENTRAL), Ovid MEDLINE, Embase e PsycINFO todos os anos até julho de 2020. Não aplicámos quaisquer restrições à data, língua ou estado de publicação.

Critério de seleção: 

Ensaios clínicos comparando a cetamina ou outros moduladores de recetores de glutamato com outros fármacos psicotrópicos ou placebo em adultos com depressão bipolar.

Coleta dos dados e análises: 

Dois autores revisores selecionaram os artigos para inclusão, avaliaram a qualidade dos ensaios e extraíram dados. As variáveis primárias de resultado clínico foram a taxa de resposta e os eventos adversos. As variáveis secundárias de resultado clínico incluíram a taxa de remissão, a mudança nos scores de gravidade da depressão, o suicídio, a cognição, a qualidade de vida e a taxa de abandono. Avaliámos o nível de certeza da evidência utilizando o modelo de avaliação GRADE.

Principais resultados: 

Dez estudos (647 participantes) foram incluídos nesta revisão (cinco estudos adicionais em comparação com a revisão de 2015). Não foram acrescentados estudos adicionais às comparações identificadas na revisão Cochrane de 2015 relativas à cetamina, memantina e citidina versus placebo. Contudo, foram encontradas três novas comparações: cetamina versus midazolam, N-acetilcisteína versus placebo, e riluzol versus placebo. Os moduladores dos recetores de glutamato estudados foram a cetamina (três ensaios), a memantina (dois), a citidina (um), a N-acetilcisteína (três) e o riluzol (um). Oito destes estudos tinham como comparador um placebo e um desenho com dois braços. Em sete ensaios, os moduladores dos recetores de glutamato foram utilizados como medicamentos adjuvantes (add-on) dos estabilizadores do humor. Apenas um ensaio comparou a cetamina com um comparador ativo, o midazolam. O período de tratamento variou desde uma única administração intravenosa (todos os estudos de cetamina), até à administração repetida para o riluzol, a memantina, a citidina, e a N-acetilcisteína (com um período de seguimento de 8 semanas, 8 a 12 semanas, 12 semanas, e 16 a 20 semanas, respetivamente). Seis dos estudos incluíram centros localizados nos EUA, um em Taiwan, um na Dinamarca, um na Austrália, e num estudo a localização não era clara. Todos os participantes tinham um diagnóstico primário de perturbação bipolar e estavam a experienciar um episódio depressivo bipolar agudo, diagnosticado de acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais quarta edição (IV) ou a revisão de texto da quarta edição (IV-TR).

Entre todos os moduladores de recetores de glutamato incluídos nesta revisão, apenas a cetamina pareceu ser mais eficaz do que o placebo, 24 horas após a infusão, relativamente à taxa de resposta (odds ratio (OR) 11,61, intervalo de confiança a 95% (IC) 1,25 a 107,74; P = 0,03; participantes = 33; estudos = 2; I² = 0%, evidência com baixo nível de certeza). A cetamina parece ser mais eficaz na redução da pontuação da escala de avaliação da depressão (DM -11,81, 95% IC -20,01 a -3,61; P = 0,005; participantes = 32; estudos = 2; I2 = 0%, evidência com muito baixo nível de certeza). Não houve evidência da eficácia da cetamina na remissão quando comparada com o placebo às 24 horas (OR 5,16, 95% IC 0,51 a 52,30; P = 0,72; participantes = 33; estudos = 2; I2 = 0%, evidência de muito baixo nível de certeza).

A evidência relativa à resposta, remissão ou pontuação na escala de classificação de depressão entre a cetamina e o midazolam foi incerta às 24 horas, tendo por base evidência de muito baixo nível de certeza (OR 3,20, 95% IC 0,23 a 45,19). No ensaio de avaliação da cetamina e midazolam, não houve abandonos devido a efeitos adversos ou por qualquer outra razão (nível de evidência muito baixo).

O placebo pode ter sido mais eficaz do que a N-acetilcisteína na redução da pontuação da escala de classificação da depressão aos três meses, embora isto se tenha baseado em evidência de muito baixo nível de certeza (DM 1,28, 95% IC 0,24 a 2,31; participantes = 58; estudos = 2). Evidência com alto nível de incerteza não encontrou diferença na resposta aos três meses (OR 0,82, 95% IC 0,32 a 2,14; participantes = 69; estudos = 2; evidência com muito baixo nível de certeza). Não existiam dados disponíveis sobre remissão ou aceitabilidade.

Estavam disponíveis dados extremamente para a comparação riluzol vs placebo, tendo sido encontrada apenas evidência de muito baixo nível de certeza relativamente à inexistência de diferenças nas taxas de abandono (OR 2,00, 95% IC 0,31 a 12,84; P = 0,46; participantes = 19; estudos = 1; I2 = 0%).

Notas de tradução: 

Traduzido por: Manuel Gonçalves-Pinho, Rafael Vieira e Luís Azevedo - MEDCIDS & CINTESIS@RISE, Faculdade de Medicina, Universidade do Porto, com o apoio da Cochrane Portugal. Revisão final: Ricardo Manuel Delgado, Cochrane Portugal.

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