Contexto
A Fibrose Quística (FQ) é uma condição genética hereditária, vitalícia, que leva vários sistemas de órgãos a produzir grandes quantidades de muco espesso e pegajoso. A área mais frequentemente afetada são os pulmões, nos quais o muco espesso leva a infeções respiratórias recorrentes e dificuldade respiratória. Outra área comummente afetada é o sistema digestivo. Muitas pessoas com FQ sofrem de distensão e dor abdominal que podem ser secundárias à obstipação ou à Síndrome de Obstrução Intestinal Distal (DIOS). Na DIOS, a sobreprodução de muco espesso combina-se com as fezes, formando uma massa que adere à parede intestinal. Esta massa pode bloquear parcialmente o intestino (DIOS incompleto) ou bloquear completamente o intestino (DIOS completo). Esta última causa dores abdominais severas, vómitos e é tratada como uma emergência médica. Parte do tratamento eficaz dos doentes com FQ, consiste no tratamento da obstipação e na prevenção da obstrução intestinal completa. É também importante reconhecer que a obstipação e a DIOS têm impacto noutros aspectos da saúde das pessoas FQ. A distensão abdominal, a dor abdominal e a náusea podem afetar a desobstrução das vias aéreas, o exercício e o sono. O estado nutricional também pode ser afetado devido à diminuição do apetite e à mal-absorção. A DIOS pode afetar a absorção de outros medicamentos necessários aos doentes com FQ. Em geral, a DIOS pode prejudicar significativamente a qualidade de vida. Diferentes laxantes são atualmente utilizados na prevenção da DIOS mas as práticas de prescrição diferem e não há consenso sobre estratégias de tratamento. Esta revisão visava analisar a evidência existente na prevenção da DIOS.
Data de pesquisa
Data da última pesquisa: 12 de outubro de 2021.
Caraterísticas do ensaio
Incluímos um ensaio na revisão, que incluiu 17 pessoas com idades compreendidas entre os 13 e os 35 anos. Estas pessoas foram alocadas aleatoriamente em dois grupos: um tratado com um medicamento placebo (sem medicação ativa) e outro tratado com cisapride, durante seis meses e, depois trocavam o braço do estudo e eram submetidos ao tratamento alternativo durante mais seis meses.
Resultados principais
O ensaio utilizou a radiografia para diagnosticar DIOS, mas não forneceu quaisquer dados e apenas reportou que não havia diferença entre o grupo com cisapride e o placebo. O ensaio também reportou que não houve efeitos adversos associados ao cisapride. O ensaio avaliou a pontuação total e individual dos sintomas gastrointestinais relatados pelo participante. As pessoas do grupo tratado com cisapride relataram uma melhoria global dos sintomas gastrointestinais em comparação com o grupo placebo. No entanto, não houve diferenças relatadas entre grupos para as pontuações individuais dos sintomas de dor e distensão abdominal. Os participantes também classificaram globalmente os sintomas, demostrando que a maioria se sentia melhor a tomar cisapride em comparação com placebo.
Qualidade da evidência:
A qualidade da evidência foi muito baixa. Com apenas um ensaio nesta revisão, não foi possível combinar dados de diferentes ensaios. O ensaio não forneceu informação suficiente sobre os métodos utilizados na alocação dos participantes, sobre os dados em falta e não reportou completamente alguns resultados. O pequeno número de participantes também reduziu a precisão dos resultados. Desde que este ensaio foi conduzido, o cisapride foi retirado do mercado em vários países devido a complicações cardíacas raras mas graves, pelo que não tem qualquer aplicabilidade na prática clínica atual.
Existe uma ausência de evidência relativa a intervenções para a prevenção de DIOS. Como havia apenas um ensaio incluído, não pudemos realizar uma meta-análise dos dados. Além disso, o ensaio incluído comparou um agente procinético (cisapride) que já não está licenciado para utilização em vários países devido ao risco de eventos cardíacos graves, evidência apenas conhecida após a realização do ensaio. Por conseguinte, os resultados do ensaio não são aplicáveis na prática clínica atual.
Em geral, é necessário realizar mais investigação sobre complicações gastrointestinais na FQ, uma vez que esta é uma área muito pouco estudada em comparação com as complicações respiratórias na FQ.
A Fibrose Quística (FQ) é a doença genética hereditária mais comum com limitação da vida. Afeta múltiplos órgãos, particularmente o sistema respiratório. Contudo, problemas gastrointestinais como a obstipação e a Síndrome de Obstrução Intestinal Distal (DIOS) são também complicações importantes e bem reconhecidas na FQ. Estes partilham sintomas semelhantes, por exemplo, distensão e dor abdominal, mas são condições distintas. A obstipação ocorre quando há uma impactação fecal gradual do cólon, mas a DIOS ocorre quando há uma acumulação de fezes e muco viscoso, formando uma massa na parte distal do intestino delgado. Esta massa pode bloquear parcialmente o intestino (DIOS incompleto) ou bloquear completamente o intestino (DIOS completo). Os sintomas de DIOS podem afetar a qualidade de vida e outros aspetos da saúde das pessoas com FQ, tais como a desobstrução das vias aéreas, o exercício, o sono e o estado nutricional. O tratamento da obstipação e a prevenção da oclusão intestinal completa são necessários para a gestão gastrointestinal na FQ. Contudo, muitas estratégias diferentes são utilizadas na prática clínica e existe uma falta de consenso. A importância deste tópico foi salientada num recente exercício de definição de prioridades de investigação pela James Lind Alliance.
Avaliar a eficácia e segurança de agentes laxantes de diferentes tipos na prevenção de DIOS (completo e incompleto) em crianças e adultos com FQ.
Pesquisámos no “Cochrane Cystic Fibrosis and Genetic Disorders Group Cystic Fibrosis Trials Register”, incluindo referências de várias bases de dados eletrónicas e buscas manuais em revistas científicas relevantes e livros de resumos de congressos. Data da pesquisa: 09 de setembro de 2021.
Procurámos também nos registos de ensaios clínicos online. Data da última pesquisa: 12 de outubro de 2021.
Ensaios aleatorizados e quase-aleatorizados, controlados, paralelos, comparando a terapia com laxantes para prevenção de DIOS (incluindo agentes osmóticos, estimulantes, mucolíticos e substâncias com mais de uma ação), em qualquer dose, com um placebo, com ausência de tratamento ou com um tratamento laxante alternativo, em pessoas de qualquer idade com FQ, com ou sem insuficiência pancreática e em qualquer fase da doença pulmonar. Os ensaios aleatorizados cruzados foram avaliados individualmente.
Dois autores avaliaram independentemente os ensaios para inclusão, extraíram os dados dos resultados e realizaram uma avaliação do risco de enviesamento para os dados incluídos. Avaliámos a qualidade da evidência usando o sistema GRADE.
Incluímos um ensaio cruzado (17 participantes) com uma duração de 12 meses, no qual os participantes foram alocados aleatoriamente a tratamento com cisapride (um agente gastro-procinético) ou com placebo, durante seis meses e depois trocaram para o outro braço do tratamento. O ensaio tinha um risco pouco claro de enviesamento para a maioria dos domínios, mas tinha um elevado risco de enviesamento da informação reportada.
Os resultados radiográficos (no diagnóstico de DIOS) não revelaram qualquer diferença na ocorrência de DIOS entre o grupo tratado com cisapride e o placebo (relatório narrativo, dados não fornecidos). Não se verificaram efeitos adversos. As classificações dos sintomas foram os únicos resultados secundários reportados no âmbito da revisão. A classificação total dos sintomas gastrointestinais favoreceu o cisapride com uma diferença média estatisticamente significativa (MD) de -7.60 (intervalo de confiança 95% (IC) -14.73 a -0.47). Não houve diferença significativa, aos seis meses, entre cisapride e placebo para sintomas como a distensão abdominal, MD -0.90 (95% CI -2.39 a 0.59) ou a dor abdominal, MD -0.4 (95% CI -2.05 a 1.25). A avaliação global dos sintomas (se os doentes se sentiam melhor ou pior) foi relatada no artigo a favor do tratamento com cisapride, sendo a diferença estatisticamente significativa (P < 0.05).
Avaliámos os dados disponíveis como sendo de muito baixa qualidade. Faltavam muitos dados relativos ao ensaio incluído e os investigadores não reportaram dados numéricos para muitos resultados. O risco global de enviesamento do ensaio não era claro e o risco de enviesamento da informação reportada era elevado. Além disso, o medicamento experimental utilizado (cisapride) foi entretanto retirado do mercado em vários países devido a efeitos adversos, pelo que não tem atualmente aplicabilidade na prevenção de DIOS. O ensaio incluído também teve muito poucos participantes, o que diminuiu a qualidade do nível de precisão.
Traduzido por: Mariana Morgado, Pediatric Surgery Fellow, The Royal Children's Hospital in Melbourne, com o apoio da Cochrane Portugal. Revisão final: Ricardo Manuel Delgado, Cochrane Portugal.