Intervenções multi-domínio para a prevenção da demência e do declínio cognitivo

Questão de revisão

Pode o declínio cognitivo e a demência ser prevenido por intervenções que visam dois ou mais fatores de risco para a demência?

Contexto

A demência é uma condição em que a memória e outras capacidades de pensamento (conhecidas como cognição, ou funcionamento cognitivo) diminuem ao ponto de afetar a capacidade de uma pessoa de ser totalmente independente nas suas atividades diárias. Pode ser causada por uma variedade de diferentes problemas cerebrais, a maioria dos quais se tornam cada vez mais comuns com a idade. Embora o risco de demência aumente para todos à medida que envelhecem, nem todos correm o mesmo risco. Foram identificados vários fatores de risco que tornam a demência mais provável. Estes incluem a tensão arterial elevada na meia-idade, diabetes, tabagismo, álcool em excesso e falta de exercício. Se estes fatores de risco forem abordados, então poderá ser possível evitar algum declínio cognitivo e demência, ou pelo menos atrasar o seu início. Como a demência é uma condição complexa e existem muitos fatores de risco diferentes, pode não ser muito eficaz visar apenas um fator de risco. Nesta revisão, estamos interessados em intervenções que visem modificar pelo menos dois fatores de risco; estes são conhecidos como intervenções multi-domínio.

Caraterísticas do estudo

Procurámos até 28 de abril de 2021 por estudos nos quais pessoas sem demência foram aleatoriamente atribuídas a uma intervenção de vários domínios ou a cuidados de saúde habituais (por exemplo, conselhos gerais de saúde) e os grupos foram posteriormente comparados através da contagem do número de pessoas que tinham desenvolvido demência ou através da medição do funcionamento cognitivo. Encontrámos quatro estudos com um total de 18,452 participantes. A idade média dos participantes era de 68 anos. Os estudos diferiram em várias formas importantes, incluindo nos fatores de risco que tentaram modificar, na duração das intervenções (de 1 ano até 10 anos), e nos testes utilizados para medir o funcionamento cognitivo. Todos os estudos tiveram lugar em países de rendimentos altos ou médios nos quais os cuidados de saúde habituais eram provavelmente de um bom nível.

Principais resultados

Apenas dois estudos contaram o número de pessoas que desenvolveram demência. Os adultos mais velhos que recebem uma intervenção multi-domínio não eram mais ou menos propensos a desenvolver demência do que os que recebem os cuidados habituais. Intervenções multi-domínio provavelmente melhoraram ligeiramente o funcionamento cognitivo quando este foi medido com um teste longo e detalhado, embora não tenhamos encontrado qualquer efeito em estudos que mediram o funcionamento cognitivo com um teste de rastreio sumário (o Mini-Mental State Examination, MMSE). Os estudos que encontraram um benefício ofereceram sobretudo treino cognitivo no âmbito da intervenção multi-domínio, tornando possível que parte do efeito pudesse ter sido devido ao facto de as pessoas terem melhorado a realização de testes cognitivos, em vez de ser devido a uma melhoria real do funcionamento cognitivo que seria visível na vida quotidiana. O efeito foi também mais forte entre os participantes que tinham um risco genético aumentado para a demência (pessoas portadoras do gene ApoE4). Nenhum dos estudos relatou efeitos nocivos das intervenções.

Verificámos que a maioria dos estudos foram bem conduzidos. Globalmente, a qualidade da evidência foi moderada a elevada, o que significa que estamos moderadamente a muito confiantes nos nossos resultados.

As nossas conclusões

Não encontrámos provas de que intervenções multi-domínio possam prevenir a demência, mas podem ter um pequeno efeito benéfico no funcionamento cognitivo das pessoas mais velhas. Houve muitas diferenças entre as intervenções e não podemos dizer nada sobre se a focalização em determinados fatores de risco ou combinações de fatores de risco pode ter um efeito maior, ou sobre quanto tempo as intervenções podem precisar de durar. Ainda há muito que se pode aprender com mais investigação nesta área.

Conclusão dos autores: 

Não encontrámos provas de que intervenções multi-domínio possam prevenir a demência incidente com base em dois ensaios clínicos. Houve uma pequena melhoria na função cognitiva avaliada por um NTB no grupo de participantes que receberam uma intervenção multi-domínio, embora este efeito tenha sido mais forte nos ensaios que ofereceram treino cognitivo no âmbito da intervenção multi-domínio, tornando difícil excluir um potencial efeito de aprendizagem. As intervenções foram diversas em termos dos seus componentes e intensidade.

Leia o resumo na íntegra...
Introdução: 

A demência é uma preocupação mundial. A sua prevalência global está a aumentar. Atualmente, não existe tratamento médico eficaz para curar ou atrasar o início do declínio cognitivo ou demência. Até 40% da demência é atribuível a fatores de risco potencialmente modificáveis, o que levou à noção de que visar estes fatores de risco poderia reduzir a incidência do declínio cognitivo e da demência. Uma vez que a demência esporádica é uma condição multifatorial, que se pensa derivar de múltiplas causas e fatores de risco, as intervenções em múltiplos domínios podem ser mais eficazes para a prevenção da demência do que as que visam fatores de risco únicos.

Objetivos: 

Avaliar os efeitos de intervençõesem multiplos dominios para a prevenção do declínio cognitivo e da demência em adultos idosos, incluindo tanto populações não selecionadas como populações com risco acrescido de declínio cognitivo e demência.

Métodos de busca: 

Pesquisamos ALOIS, no registo do Cochrane Dementia and Cognitive Improvement Group, MEDLINE (Ovid SP), Embase (Ovid SP), PsycINFO (Ovid SP), CINAHL (EBSCOhost), Web of Science Core Collection (ISI Web of Science), LILACS (BIREME), e ClinicalTrials.gov a 28 de Abril de 2021. Também revimos citações de listas de referência de estudos incluídos, artigos de referência, e documentos de revisão para identificar estudos adicionais e avaliámos a sua adequação para inclusão na revisão.

Critério de seleção: 

Definimos uma intervenção em multiplos dominios como uma intervenção com mais de um componente, farmacológico ou não farmacológico, mas que não consiste apenas em dois ou mais medicamentos com o mesmo alvo terapêutico. Incluímos ensaios controlados aleatorizados (RCT) avaliando o efeito de uma tal intervenção no funcionamento cognitivo e/ou demência incidente. Aceitámos como condições de controlo qualquer intervenção placebo ou cuidados habituais, mas não intervenções de domínio único destinadas a reduzir o risco de demência. Seleccionámos estudos que tivessem um mínimo de 400 participantes e uma duração de intervenção e acompanhamento de pelo menos 12 meses.

Coleta dos dados e análises: 

Inicialmente, analisámos os resultados da pesquisa utilizando um método de 'crowdsourcing' no qual os membros da plataforma científica do cidadão Cochrane identificam os RCTs. Examinámos as citações identificadas de acordo com os critérios de inclusão por dois autores de revisão que trabalham independentemente. Pelo menos dois autores de revisões que também extraíram dados de forma independente, avaliaram o risco de enviesamento e aplicaram a abordagem GRADE para avaliar a certeza da evidência Definimos revisões de alta certeza como ensaios com baixo risco de enviesamento em todos os domínios, para além de ocultar os participantes e o pessoal envolvido na administração da intervenção (porque as intervenções no estilo de vida são difíceis de ocultar). Os resultados críticos foram a demência incidente, o défice cognitivo ligeiro incidente (ICM), o declínio cognitivo medido com qualquer medida validada, e a mortalidade. Os resultados importantes incluíram eventos adversos (por exemplo, eventos cardiovasculares), qualidade de vida, e atividades da vida diária (ADL). Quando apropriado, sintetizamos os dados em meta-análises de efeitos aleatórios. Expressámos os efeitos do tratamento como rácios de risco (RRs) e diferenças médias (MDs) com intervalos de confiança de 95% (CIs).

Principais resultados: 

Incluímos nove RCTs (18.452 participantes) nesta revisão. Dois estudos relataram casos de demência como resultado; todos os nove estudos relataram uma medida para o funcionamento cognitivo. A avaliação do funcionamento cognitivo foi muito heterogénea através de estudos, desde avaliações neuropsicológicas completas a testes de rastreio sumários, tais como o mini exame do estado mental (MMSE). A duração das intervenções variou de 12 meses a 10 anos.

Comparámos intervenções multi-domínio contra cuidados habituais ou uma intervenção placebo. Os MD e RR positivos <1 favorecem as intervenções multi-domínio sobre as intervenções de controlo. Para a demência incidente, não houve evidência de uma diferença entre o grupo de intervenção multi-domínio e o grupo de controlo (RR 0,94, 95% CI 0,76 a 1,18; 2 estudos; 7256 participantes; evidência de alta certeza). Houve uma pequena diferença no Z-score composto para a função cognitiva medida com uma bateria de testes neuropsicológicos (NTB) (MD 0,03, 95% CI 0,01 a 0,06; 3 estudos; 4617 participantes; evidência de alta certeza) e com a escala de Avaliação Cognitiva de Montreal (MoCA) (MD 0,76 pontos, 95% CI 0,05 a 1.46; 2 estudos; 1554 participantes), mas a certeza da evidência para o MoCA foi muito baixa (devido a grande risco de enviesamento, inconsistência e imprecisão) e não houve evidência de um efeito sobre o MMSE (MD 0,02 ponto, 95% CI -0,06 a 0,09; 6 estudos; 8697 participantes; evidência de moderada certeza). Não houve evidência de um efeito sobre a mortalidade (RR 0,93, 95% CI 0,84 a 1,04; 4 estudos; 11.487 participantes; evidência de alta certeza).

Houve evidência de alta certeza para uma interação da intervenção multi-domínio com o estado ApoE4 sobre o resultado da função cognitiva medida com um NTB (portadores MD 0,14, 95% CI 0,04 a 0,25, não portadores MD 0,04, 95% CI -0,02 a 0,10, P para interação 0,09). Não houve evidência clara de uma interação com o estado cognitivo de base (definido pelo MMSE-score) sobre a função cognitiva medida com um NTB (grupo MMSE low baseline MD 0,06, 95% CI 0,01 a 0,11, grupo MMSE high baseline MD 0.01, 95% CI -0,01 a 0,04, P para interacção 0,12), nem houve evidência clara de um efeito nos participantes com uma pontuação de Fatores de Risco Cardiovascular, Envelhecimento, e Incidência de Demência (CAIDE) > 6 pontos (MD 0,07, 95%CI -0,00 a 0,15).

Notas de tradução: 

Traduzido por: João Cruz Araújo, Unidade de Saúde Familiar Gualtar, ACeS Cávado I e Pedro Pereira Peixoto, Unidade de Saúde Familiar do Mar, ACeS Grande Porto IV, com o apoio da Cochrane Portugal.

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