Introdução
As crianças desnutridas têm uma aparência muito magra e um alto risco de morrer ou de adoecer. Nas zonas rurais, o tratamento hospitalar de crianças com desnutrição aguda grave nem sempre é desejável ou prático. Nesses casos, o tratamento domiciliar pode ser melhor. O tratamento domiciliar pode ser feito de duas maneiras. A primeira consiste em dar a essas crianças alimentos preparados pelos responsáveis como mingau de farinha ou alimentos altamente energéticos ou ricos em nutrientes. A segunda maneira de tratar essas crianças é dando a elas um alimento terapêutico pronto para uso (ATPU) fornecido por uma unidade de saúde. O ATPU tem uma composição padronizada altamente calórica que é estabelecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Os ingredientes habituais do ATPU incluem leite em pó, açúcar, manteiga de amendoim, óleo vegetal, vitaminas e minerais. Porém, os ingredientes dependem de fatores como aceitação, custos e disponibilidade local dos mesmos. O ATPU pode ser conservado sem refrigeração por um longo período e é servido sem nenhum preparo. Esta é uma atualização de uma revisão anterior que, baseada nos quatro estudos disponíveis na época, não chegou a conclusões definitivas sobre os efeitos dos ATPU.
Pergunta da revisão
Comparamos os ATPU versus outras intervenções alimentares (como mingau de farinha ou outros alimentos locais) para saber se pequenas quantidades e diferentes fórmulas de ATPU trariam resultados semelhantes em crianças de seis meses até cinco anos com desnutrição grave. Os principais desfechos de saúde que nós investigamos foram a recuperação da desnutrição grave, a recaída (piora da desnutrição), a morte e o ganho de peso.
Características dos estudos incluídos
Fizemos buscas em várias bases de dados por estudos publicados até outubro de 2018 e encontramos 15 estudos envolvendo 7976 crianças. Oito estudos foram realizados no Malawi, quatro na Índia, e um estudo cada no Quênia, Zâmbia e Camboja. Um dos estudos incluiu apenas crianças com o vírus do HIV. Outro estudo analisou separadamente crianças com e sem HIV para o principal desfecho (recuperação da desnutrição). Os outros estudos incluíram crianças que não tinham HIV ou que não fizeram exames para saber se estavam infectadas. Seis dos estudos tinham um alto risco de viés, três tinham um risco de viés incerto, e seis estudos tinham um baixo risco de viés. O ´risco de viés´ avalia se os métodos usados em um estudo permitem confiar nos resultados do estudo. Um estudo com alto risco de viés indica que há uma grande chance de que o resultado encontrado naquele estudo não seja confiável. Todos os estudos tiveram duração entre 8 e 16 semanas. Apenas cinco estudos acompanharam as crianças depois do fim do estudo (por até seis meses) e avaliaram apenas alguns resultados.
Seis dos 15 estudos receberam doações ou verbas de fabricantes dos produtos, um dos estudos não informou se recebeu patrocínio, e oito estudos receberam verbas de outras fontes.
Principais achados
O uso de ATPU, comparado com outros tratamentos dietéticos, provavelmente melhora a recuperação das crianças (evidência de qualidade moderada) e pode aumentar um pouco a taxa de ganho de peso. Porém não se sabe qual é o efeito dos ATPU sobre a recorrência da desnutrição nem sobre o risco de morte (evidência de qualidade muito baixa). A ´qualidade da evidência´ indica o grau de confiança que temos que um determinado resultado seja verdadeiro. Por exemplo, ´evidência de qualidade muito baixa´ indica que temos pouquíssima confiança quanto aos resultados encontrados, ´evidência de baixa qualidade´ indica que é muito provável que outros estudos realizados no futuro venham a encontrar resultados diferentes, e ´evidência de alta qualidade´ indica que é pouco provável que novos estudos modifiquem os resultados encontrados.
O uso de ATPU padrão com as necessidades alimentares diárias, comparado com o uso de um ATPU semelhante como suplemento a uma dieta habitual, pode melhorar a recuperação e reduzir a recorrência de desnutrição. Porém, não se sabe qual é o efeito dessa intervenção sobre a taxa de ganho de peso ou sobre o risco de morte das crianças (evidência de qualidade muito baixa).
Não existe diferença entre o uso de diferentes fórmulas de ATPU sobre a recuperação das crianças (evidência de alta qualidade). O uso de ATPU padrão reduz o risco de recorrência de desnutrição (evidência de alta qualidade). Não há diferença entre o uso de ATPU padrão ou alternativo sobre o risco de morte (evidência de qualidade moderada) e sobre a taxa de ganho de peso (evidência de baixa qualidade).
É necessário fazer mais ensaios clínicos randomizados que analisem separadamente crianças com e sem HIV, e que avaliem a ocorrência de diarreia nos participantes. Ensaios clínicos randomizados são um tipo de estudo no qual os participantes que preenchem os critérios de seleção têm uma chance igual de serem alocados ao grupo de intervenção ou ao grupo controle.
O uso de ATPU, comparado com outros tratamentos dietéticos, provavelmente melhora a recuperação das crianças e pode aumentar um pouco a taxa de ganho de peso. Porém não se sabe qual é o efeito dos ATPU sobre a recorrência da desnutrição nem sobre o risco de morte. O uso de ATPU padrão com todas necessidades alimentares diárias, comparado com o uso de um ATPU semelhante como suplemento a uma dieta habitual, pode melhorar a recuperação e reduzir a recorrência de desnutrição. Porém, não se sabe qual é o efeito dessa intervenção sobre a taxa de ganho de peso ou sobre o risco de morte das crianças. A evidência atualmente disponível não aponta superioridade de qualquer fórmula específica de ATPU, exceto para prevenção da recorrência de desnutrição que é menor com o uso de ATPU padrão. É necessário fazer mais ECRs pragmáticos, com poder adequado e com desfechos padronizados. Esses novos estudos devem também estratificar seus participantes com e sem HIV e incluir diarreia como um dos desfechos.
O manejo das crianças com desnutrição aguda grave (DAG) envolve a fase de estabilização e a fase de reabilitação. Na fase de estabilização, as crianças recebem tratamento para desidratação, desequilíbrios eletrolíticos, infecções, e outras complicações. Na fase de reabilitação (para crianças com DAG sem complicações ou com complicações tratadas), o principal foco é a volta ao crescimento normal e as necessidades energéticas e proteicas são muito maiores. A internação hospitalar de crianças com DAG nem sempre é desejável ou prática, especialmente em áreas rurais. Nesses casos, o tratamento domiciliar é melhor. O uso de alimentos terapêuticos prontos para uso (ATPU) é uma opção bastante popular para a reabilitação domiciliar dessas crianças. Porém, os achados da versão anterior da nossa revisão foram inconclusivos.
Avaliar os efeitos do uso domiciliar de ATPU sobre a recuperação, recorrência, mortalidade e taxa de ganho de peso de crianças entre seis meses a cinco anos com DAG.
Em outubro de 2018 fizemos buscas nas seguintes bases de dados: CENTRAL, MEDLINE, Embase, seis outras bases de dados e três plataformas de registros de ensaios clínicos. Fizemos buscas separadas para estudos de custo-efetividade, entramos em contato com pesquisadores e profissionais de saúde da área, e revisamos as referências dos estudos incluídos e das revisões relevantes.
Incluímos ensaios clínicos randomizados (ECRs) e quasi-randomizados que recrutaram crianças entre seis meses e cinco anos de idade com DAG que estavam na fase de reabilitação. Os estudos deveriam comparar o uso domiciliar de ATPU versus outras intervenções dietéticas ou versus outros regimes ou fórmulas de ATPU. Os desfechos primários foram recuperação, piora ou recorrência da desnutrição, e mortalidade. Os desfechos secundários foram taxa de ganho de peso, tempo de recuperação, modificações antropométricas, desenvolvimento e função cognitiva, eventos adversos, e aceitação.
A seleção dos estudos elegíveis, a extração dos dados e a avaliação do risco de viés dos estudos incluídos foram feitas de forma independente por dois revisores. Quando possível, fizemos metanálises com o modelo de efeito randômico usando o software Review Manager 5. Nas metanálises com alta heterogeneidade, fizemos análises de subgrupos e de sensibilidade. Usamos o GRADE para avaliar a qualidade da evidência para os desfechos principais e apresentamos os resultados em uma tabela de ´Resumo dos achados´ para cada comparação.
Incluímos na revisão um total de 15 estudos (n=7976; tamanho amostral efetivo=6630). Quatro dos estudos eram ensaios clínicos por conglomerados (cluster). Oito estudos foram realizados no Malawi, quatro na Índia, e um estudo cada no Quênia, Zâmbia e Camboja. Seis estudos receberam doações ou foram financiados por indústrias, oito estudos não receberam esse tipo de fomento, e um estudo não informou a fonte de apoio financeiro.
Seis estudos tinham um alto risco de viés, três estudos tinham um risco de viés incerto, e seis estudos tinham um baixo risco de viés. Quatorze estudos foram incluídos em metanálises. Em 5 desses estudos, nenhum participante foi internado, em 4 estudos todas crianças foram internadas, e em 5 estudos algumas crianças foram internadas em hospitais para a fase de estabilização antes do estudo iniciar. Um pequeno estudo incluiu apenas crianças com HIV. Outro estudo apresentou análises separadas para ´recuperação´ para as crianças com e sem HIV. Os outros estudos incluíram crianças sem HIV ou que não haviam feito exames para HIV. A duração da intervenção variou entre 8 e 16 semanas. Apenas cinco estudos acompanharam as crianças depois do fim do estudo (por até seis meses) e avaliaram apenas alguns desfechos.
Incluímos sete estudos com 2261 crianças que compararam o uso domiciliar de ATPU baseado nas recomendações nutricionais da Organização Mundial da Saúde (denominadas nesta revisão como ATPU padrão) versus outra intervenção nutricional (tamanho amostral efetivo = 1964). O uso de ATPU provavelmente melhora a recuperação das crianças com DAG (risco relativo-RR 1,33, intervalo de confiança-IC 95% 1,16 a 1,54, 6 estudos, 1852 crianças, evidência de qualidade moderada) e pode aumentar a taxa de ganho de peso (diferença média-MD 1,12 g/Kg/dia, IC 95% 0,27 a 1,96, 4 estudos, 1450 crianças, evidência de baixa qualidade). Porém, não temos certeza do efeito dessa intervenção sobre a recorrência da desnutrição (RR 0,55, IC 95% 0,30 a 1,01, 4 estudos, 1505 crianças, evidência de qualidade muito baixa) e sobre a mortalidade (RR 1,05, IC 95% 0,51 a 2,16, 4 estudos, 1505 crianças, evidência de qualidade muito baixa).
Dois estudos quasi-randomizados tipo cluster compararam o uso domiciliar de ATPU com todas necessidades nutricionais versus um ATPU similar porém oferecido com suplemento à dieta habitual da criança (213 participantes; tamanho amostral efetivo = 210). A metanálise indicou que o ATPU padrão pode melhorar a recuperação das crianças (RR 1,41, IC 95% 1,19 a 1,68, evidência de baixa qualidade) e reduzir a recorrência da desnutrição (RR 0,11, IC 95% 0,01 a 0,85, evidência de baixa qualidade). Porém os efeitos dessa intervenção são incertos sobre a mortalidade (RR 1,36, IC 95% 0,46 a 4,04, evidência de qualidade muito baixa) e sobre a taxa de ganho de peso (MD 1,21 g/Kg/dia, IC 95% - 0,74 a 3,16, evidência de qualidade muito baixa).
Oito estudos randomizaram 5502 crianças (tamanho amostral efetivo = 4456) e compararam o uso domiciliar de ATPU padrão versus ATPU com fórmulas diferentes (por exemplo usando ingredientes localmente disponíveis, com menos ou sem leite em pó, com alguns ácidos graxos específicos, ou com prébióticos e probióticos adicionais). Não houve diferença entre o ATPU padrão versus ATPU com outras fórmulas na recuperação das crianças (RR 1,03, IC 95% 0,99 a 1,08, 6 estudos, 4188 crianças, evidência de alta qualidade). O uso de ATPU padrão reduziu o risco de recorrência da desnutrição (RR 0,84, IC 95% 0,72 a 0,98, 6 estudos, 4188 crianças, evidência de alta qualidade). Porém, há pouca ou nenhuma diferença entre os dois tipos de ATPU sobre o risco de morte (RR 1,00, IC 95% 0,80 a 1,24, 7 estudos, 4309 crianças, evidência de qualidade moderada) e na taxa de ganho de peso (MD 0,11 g/Kg/dia, IC 95% - 0,32 a 0,54, 6 estudos, 3807 crianças, evidência de baixa qualidade).
Tradução do Centro Cochrane Brazil (Élide S. M. da Costa e Maria Regina Torloni) - Contato: tradutores@centrocochranedobrasil.org.br