O que é desidratação e como ela é tratada?
Crianças com diarreia aguda ou gastroenterite que ficam gravemente desidratadas necessitam de reidratação intravenosa (na veia) com líquidos (chamada correção intravenosa). As soluções intravenosas mais comuns utilizadas para esse fim são os chamados cristaloides, que são soluções de sais minerais (por exemplo, eletrólitos como sódio, potássio ou cloreto). O cristaloide comumente usado para reidratar crianças é a solução salina a 0,9%. Não está claro se esta solução é a melhor intervenção para essas crianças porque, quando comparada a outros fluidos em outras doenças e condições, o uso de solução salina a 0,9% tem sido associado à geração ou agravamento da acidose metabólica estabelecida e ao aumento do tempo de internação hospitalar.
O que é acidose metabólica?
A acidose metabólica é definida como uma redução no pH sérico causada por diversas doenças, incluindo a desidratação. O pH é uma medida de quão ácidas/básicas são as soluções (como a água ou os fluidos corporais). Outra medida do grau de acidose são os níveis séricos de bicarbonato. O bicarbonato é um tampão corporal que ajuda a compensar o pH quando ocorre acidose metabólica. Quanto menor o nível de bicarbonato sérico, mais grave é a acidose. A acidose metabólica é uma complicação comum da desidratação, que pode causar vômitos e dificultar a ingestão de alimentos em crianças em recuperação da desidratação, o que pode aumentar o tempo de internação hospitalar. Quando a acidose metabólica é grave (pH muito baixo) e não tratada, afeta as funções metabólicas do corpo. Outro receio da utilização de solução salina a 0,9% é o potencial aumento do risco de hipocalemia (níveis baixos de potássio no sangue), que afeta frequentemente crianças desidratadas. A hipocalemia pode prejudicar a capacidade das crianças de receber fluidos orais e de se alimentar, entre outras complicações, devido à fraqueza muscular e à diminuição da motilidade gastrointestinal.
O que não se sabe sobre o tratamento da desidratação grave em crianças com diarreia?
As alternativas ao soro fisiológico 0,9% são as chamadas soluções balanceadas, que são definidas como fluidos intravenosos com composição eletrolítica próxima à do plasma humano (componente do sangue). Em comparação com a solução salina a 0,9%, que contém apenas sódio e cloreto, as soluções balanceadas têm uma composição de eletrólitos (sódio, potássio e cloreto) semelhante à composição do plasma humano, incluindo cátions adicionais (cálcio, potássio ou magnésio) , e ânions como lactato, acetato ou gluconato. Espera-se que uma composição mais semelhante ao plasma humano seja mais benéfica para a reidratação do que a tradicional solução salina a 0,9%. Esta Revisão Cochrane teve como objetivo determinar se a reidratação de crianças desidratadas com soluções balanceadas resulta em melhores resultados quando comparada à solução salina a 0,9%.
O que queríamos descobrir?
Queríamos saber se havia alguma diferença entre reidratar uma criança com desidratação grave por diarreia com solução salina a 0,9% e utilizando soluções balanceadas.
O que nós fizemos?
Pesquisamos bancos de dados médicos e identificamos cinco estudos que avaliaram 465 crianças. Estes estudos compararam aleatoriamente soluções balanceadas (Ringer-lactato ou Plasma-Lyte) com soluções salinas a 0,9% para crianças gravemente desidratadas com diarreia aguda. Estudos foram realizados na Índia, Paquistão, EUA e Canadá.
O que descobrimos?
Em crianças gravemente desidratadas com diarreia, a reidratação com soluções balanceadas provavelmente resulta numa ligeira redução no tempo de hospitalização das crianças, embora haja muitas incertezas sobre o seu efeito nas mortes durante a hospitalização quando comparada com a reidratação com solução salina a 0,9%.
Soluções balanceadas podem produzir um aumento maior no pH sanguíneo e nos níveis de bicarbonato após a correção, o que pode indicar uma melhora mais rápida da acidose metabólica. Entretanto, soluções balanceadas não produzem alterações na necessidade de fluidos intravenosos adicionais após a correção inicial; no volume de líquidos administrados; e na alteração média dos níveis de eletrólitos e creatinina (um produto residual que vem dos músculos).
Além disso, em termos de efeitos colaterais, as soluções balanceadas provavelmente reduzem o risco de hipocalemia após a correção intravenosa (ou seja, menos crianças com valores baixos de potássio sérico) após a correção intravenosa, e provavelmente não fazem diferença na incidência de hiponatremia (baixa concentração de sódio no sangue), quando comparado com solução salina a 0,9%.
Nossos resultados são principalmente aplicáveis ao Ringer-lactato, já que a maioria das evidências veio de estudos que compararam solução salina a 0,9% com esta solução. As evidências sobre o Plasma-Lyte (outra solução balanceada) são escassas e merecem mais estudos.
Quais são as limitações das evidências?
As evidências comparando solução salina 0,9% e soluções balanceadas são escassas. Os estudos disponíveis avaliaram um número muito baixo de crianças e é possível que as pessoas envolvidas nos estudos tivessem conhecimento do tratamento que as crianças recebiam, o que nos dá pouca confiança nos resultados.
Até que ponto estas evidências estão atualizadas?
Esta revisão resumiu as evidências até 4 de maio de 2022.
A evidência é muito incerta sobre o efeito de soluções equilibradas na mortalidade durante a hospitalização em crianças gravemente desidratadas. No entanto, soluções balanceadas provavelmente resultam em uma pequena redução do tempo de internação em comparação com solução salina a 0,9%. Além disso, soluções balanceadas provavelmente reduzem o risco de hipocalemia após correção intravenosa.
Além disso, as evidências sugerem que soluções balanceadas comparadas com solução salina a 0,9% provavelmente não produzem alterações na necessidade de fluidos intravenosos adicionais ou em outras medidas bioquímicas, como níveis de sódio, cloreto, potássio e creatinina. Por último, pode não haver diferença entre soluções balanceadas e solução salina a 0,9% na incidência de hiponatremia.
Embora a diarreia aguda seja uma doença autolimitada,em algumas crianças pode ocorrer desidratação. A desidratação é consequência do aumento da perda de água e eletrólitos (sódio, cloreto, potássio e bicarbonato) nas fezes líquidas. Quando essas perdas são elevadas e não são repostas adequadamente, surge uma desidratação grave. A desidratação grave é corrigida com soluções intravenosas. A solução mais utilizada para esse fim é o soro fisiológico a 0,9%. Soluções balanceadas (por exemplo, Ringer-lactato) são alternativas à solução salina a 0,9% e têm sido associadas a menos dias de hospitalização e melhores resultados bioquímicos. As diretrizes disponíveis apresentam recomendações conflitantes. Não está claro se a solução salina a 0,9% ou fluidos intravenosos balanceados são mais eficazes para reidratar crianças com desidratação grave devido a diarreia.
Para avaliar os benefícios e malefícios de soluções balanceadas para a reidratação rápida de crianças com desidratação grave por diarreia aguda, em termos de tempo de internação e mortalidade em comparação com solução salina a 0,9%.
Seguimos as recomendações metodológicas de buscas abrangentes conforme os padrões da Cochrane. A data da última busca foi 4 de maio de 2022.
Incluímos estudos clínicos randomizados em crianças com desidratação grave por diarreia aguda comparando soluções balanceadas, como Ringer-lactato ou Plasma-Lyte com solução salina a 0,9%, para reidratação rápida.
Seguimos as recomendações metodológicas da Cochrane. Nossos desfechos primários foram: 1. tempo de internação e 2. mortalidade. Nossos desfechos secundários foram: 3. necessidade de líquidos adicionais, 4. quantidade total de líquidos recebidos, 5. tempo para resolução da acidose metabólica, 6. alterações nos valores finais de indicadores bioquímicos (pH, bicarbonato, sódio, cloreto, potássio, e creatinina), 7. incidência de lesão renal aguda e 8. ocorrência de eventos adversos. Usamos o GRADE para avaliar a certeza das evidências.
Características dos estudos incluídos
Incluímos cinco estudos com 465 crianças. Os dados para a meta-análise estavam disponíveis de 441 crianças. Quatro estudos foram conduzidos em países de renda baixa e média, enquanto um estudo foi realizado em dois países de alta renda. Quatro estudos avaliaram o Ringer-lactato e um estudo avaliou o Plasma-Lyte. Dois estudos relataram o tempo de internação e apenas um estudo relatou mortalidade como um desfecho. Quatro estudos relataram o pH final e cinco estudos relataram níveis de bicarbonato. Os eventos adversos observados incluíram hiponatremia e hipocalemia, relatados em dois estudos cada.
Risco de viés
Todos os estudos tinham pelo menos um domínio com risco de viés alto ou pouco claro. A avaliação do risco de viés contribuiu para as avaliações do GRADE.
Desfechos primários
Em comparação com solução salina a 0,9%, as soluções balanceadas provavelmente resultam em uma ligeira redução do tempo de internação (diferença média (DM) -0,35 dias, intervalo de confiança (IC) de 95% -0,60 a -0,10; 2 estudos; evidência de certeza moderada). No entanto, a evidência é muito incerta sobre o efeito das soluções balanceadas na mortalidade durante a hospitalização em crianças gravemente desidratadas (risco relativo (RR) 0,33, IC 95% 0,02 a 7,39; 1 estudo, 22 crianças; evidência de certeza muito baixa).
Desfechos secundários
Soluções balanceadas provavelmente produzem um aumento maior no pH sanguíneo (DM 0,06, IC 95% 0,03 a 0,09; 4 estudos, 366 crianças; evidência de baixa certeza) e níveis de bicarbonato (DM 2,44 mEq/L, IC 95% 0,92 a 3,97; 443 crianças, quatro estudos; evidência de baixa certeza). Além disso, soluções balanceadas provavelmente reduzem o risco de hipocalemia após a correção intravenosa (RR 0,54, IC 95% 0,31 a 0,96; dois estudos, 147 crianças; evidência de certeza moderada).
No entanto, as evidências sugerem que soluções balanceadas podem não ter nenhuma diferença na necessidade de fluidos intravenosos adicionais após a correção inicial; na quantidade de líquidos administrados; ou na variação média dos níveis de sódio, cloreto, potássio e creatinina.
Tradução do Cochrane Brazil Obadias Machava e Aline Rocha. Contato: tradutores.cochrane.br@gmail.com